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Abuso Infantil: Denunciar pode evitar anos de sofrimento, alerta Creas
Para delatar abusos em crianças e adolescentes, há diversos números: O 0800 280 9534, os disques 100, 180 e 190.
Por SEMUC
03/06/2015
A sala estava cheia de brinquedos. De perto, três psicólogas e duas assistentes sociais acompanhavam a entrevista, cuja única pergunta foi sobre a rotina da menina há algumas semanas. O olhar da criança era distante, vazio; seu único brilho vinha de lágrimas acumuladas. “Era assim, meu pai me batia e botava a gente para trabalhar”, lembrava a vítima, de apenas 10 anos.
Ela não tinha tempo para brincar, nem fazer as tarefas da escola. A rotina era marcada por trabalhos forçados. “Catava lixo na rua para ter o que comer no final do dia. Podia fazer sol ou chuva, se a gente deixasse de acordar às 4h todo dia para fazer o serviço, o pai jogava água gelada na gente”, contava a criança, olhando para baixo, enquanto começava a tremer.
A temperatura baixa jogada bruscamente em cima de corpos que tentavam se aquecer durante noites mal dormidas não doía tanto quanto os diversos outros tipos de tortura que a menina e os dois irmãos mais novos sofriam todos os dias. Espancamentos com cintos e cordas eram a maneira que o pai encontrou para “educá-los”.
Tão terrível quanto os abusos que sofria, era o bullying que enfrentava todos os dias na escola. Os colegas de sala ignoravam totalmente a menina. “Até hoje fingem que eu não existo. Ninguém gosta de mim lá porque eu catava lixo”, murmurou a criança, que logo em seguida chorou. A entrevista foi encerrada.
De 2013 até o ano passado, mais de 3,1 mil casos de abusos juvenis foram registrados pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), sendo de violência física e/ou sexual. Jorgina Peixoto, gerente da entidade, acompanhou o relato da criança entrevistada e logo pontuou:
“O sofrimento dela poderia ser encurtado com uma denúncia, porque certamente havia gritos de dor que podiam ser escutados de longe. Mas infelizmente, ela passou 10 anos suportando tudo isso porque, provavelmente, vizinhos e parentes quiseram ser compreensivos com o pai e não delataram logo. Essa ‘bondade’ alheia custa caro”, observou.
Quando assumiu a direção do abrigo municipal Pedra Pintada, há um ano, Ivanilde Texeira lembra de ter encontrado 42 crianças abandonadas ou que fugiram das famílias. Agora, há apenas 12 no local. “São muito agressivas ou extremamente retraídas. A maioria das vítimas só conseguiu sair das situações de violência quando foram parar em postos de saúde ou no Hospital da Criança Santo Antônio”, afirmou.
Nas escolas, professores também percebem comportamentos diferentes nos alunos e logo denunciam. Parentes próximos e vizinhos são os que menos delatam. Nesse sentido, o Pedra Pintada, mantido pela Prefeitura de Boa Vista, tem dois papéis: acolher a criança e, então, estudar o caso da mesma, conversando com ela e os familiares.
Quando os casos são constatados, os pequenos são encaminhados para a rede pública, dentro da qual fazem parte o programa Família que Acolhe (FQA), o Centro de Atenção Psicossocial Dona Antônia Souza (Caps II) e o já mencionado Creas.
No caso de agressões físicas, o FQA convida a família para participar da Universidade do Bebê, onde diversos profissionais, como psicólogos e enfermeiros, guiam os pais a desenvolver um olhar diferenciado. “Mostramos que há outras formas de chamar a atenção da criança, bem longe da violência. Um simples diálogo diário já melhora muito a interação entre pais e filhos”, frisou Thayssa Cardoso, coordenadora do programa.
O FQA também acompanha famílias durante a fase de reinserção da criança no lar. Muitos pais permanecem no programa após a fase de orientação, por conta das ferramentas oferecidas. “Quando temos casos de violência impetuosa, seguida de torturas, enviamos nossa equipe de visitas à residência denunciada e tentamos falar com o familiar agressor. Se ele for hostil, encaminhamos o caso ao Conselho Tutelar e/ou Ministério Público do Estado”, frisou Thayssa.
Pequeninos com distúrbios mentais são acompanhadas pelo Caps II. Geralmente são casos de trauma, ocasionados pelos abusos. “Já registramos uma situação de violação sexual que ocorria desde os 3 meses de vida da criança”, contou a psicóloga Emanuele Schwaab. “Nós, profissionais, também fazemos reuniões de tratamento, para não adoecer junto dos pacientes. Mas temos casos tão chocantes, que às vezes parece impossível seguir de cabeça erguida”, lamentou.
Pedra Pintada - A criança entrevistada só conseguiu se livrar da situação que passava quando fugiu para a casa de uma irmã, a qual mais tarde ligou para o Conselho Tutelar. A moça em questão é, na verdade, filha da madrasta da vítima. Paralelamente, o irmão mais novo da menina procurou o abrigo municipal, pedindo por ajuda diretamente às assistentes socais. Então, os três pequenos foram acolhidos pela casa.
“O mais legal daqui é o parquinho”, sorriu a menina. “As tias cuidam da gente toda hora, eu posso fazer meu dever de casa e aqui não sou rejeitada”, dizia a criança, enquanto segurava um dos brinquedos da sala. Então, levantou a cabeça e fechou os olhos: “Mas sinto muita saudade da mamãe e da minha irmã [madrasta e filha]. Por favor, escreve aí que eu queria vê-las logo”, sussurrou.
A própria criança informou que foi abandonada pela mãe biológica aos 3 anos. O único laço de afeto que desenvolveu foi com a madrasta. “Ela conversava comigo, me dava carinho. Queria poder voltar para perto dela”, desejava a menina.
“A idade das crianças que passam pelas piores situações está entre 5 a 10 anos. Sempre são praticadas por um parente muito próximo. Geralmente pai ou padrasto”, afirmou Ivanilde. Para situações assim, a questão da adoção é levada em conta. “É que, nesses casos, geralmente a figura materna é compassiva com as torturas da criança, porque prefere o parceiro ao filho”, esclareceu.
Para delatar abusos em crianças e adolescentes, há diversos números: O 0800 280 9534, os disques 100, 180 e 190, além dos próprios números do Creas (3224-3807) e do FQA (3621-6055) são apenas alguns deles. Vale lembrar: a denúncia é anônima e pode trazer de volta o sorriso de uma pessoa indefesa.
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